Imagine um prédio moderno, lindíssimo, com muito vidro e uma macia luz natural entrando. Do lado de fora, um grande pátio para as pessoas conversarem ao ar livre, conviverem. Você entra e encontra espaços para sentar e várias mesas com peças de xadrez a postos para quem quiser jogar. Estão ali, de pé, na mais simples confiança e tranquilidade de que não se perderão nem serão levadas por ninguém. Há lugar para refeições e também um grande espaço que pode ser usado como cinema, teatro e o que mais quiser.
Imagine que, ao subir para o andar superior, você dê de cara com uma arquibancada com design diferentão, aconchegante, na qual qualquer criança, jovem ou adulto pode descansar, trabalhar, estudar ou conversar. Há um espaço ao lado com várias máquinas e todos os materiais para costura, uma gráfica e salas de trabalho. Caminhando um pouco mais, você encontra um estúdio de música totalmente equipado e, ao lado dele, um painel com vários instrumentos de primeira linha para serem usados. Há salas com paredes de vidro para jogar videogames, para estudos em grupo, para momentos individuais. As pessoas circulam, conversam, trocam ideias e criam.
Agora visualize que você está subindo uma escada para ir ainda além. No piso superior, uma sala imensa, limpíssima, com plantas, belíssimos móveis e iluminação perfeita. Ela está recheada de prateleiras com os mais diversos livros. As prateleiras não vão até o teto, criando labirintos. Elas são baixas o suficiente para que os olhos visualizem todo aquele ambiente em sua amplidão. Há um espaço com sofás e mesas para interação, além de outra arquibancada em madeira, onde as pessoas se jogam confortavelmente. No lado oposto, um lugar para crianças. As prateleiras são tão baixas que basta conseguir se colocar de pé para o alcance ser garantido. Qualquer miúdo com pouco mais de um ano já tem autonomia para usar. O computador para escanear os muitos livros segue o mesmo padrão de altura. Há espaço para brincar, para ler e até para correr. Do lado de fora, uma varanda ampla com uma vista linda. Ali, tudo é usado, ocupado. Tudo tem cheiro de liberdade.
Seria o paraíso para os amantes da educação e da cultura? Talvez. Essa é a Oodi, biblioteca pública de Helsinki, que tivemos a oportunidade de conhecer há alguns dias. A visita ao espaço trouxe dois sentimentos muito fortes em nós: grande admiração e uma espécie de tristeza. Vou explicar o porquê.


Nós estivemos em Helsinki, na Finlândia, para realizar uma pesquisa através do programa Culture Moves Europe, junto ao Instituto Guimarães Rosa. Sobre a pesquisa, falarei no futuro, mas hoje quero compartilhar com vocês que me leem sobre as reflexões dessa passagem pela cidade. É claro que não existe sociedade perfeita. Há desafios e mazelas em qualquer uma. Mas os finlandeses conseguiram êxitos impressionantes.
A Finlândia é conhecida por ser um estado de bem-estar social de sucesso. A lógica é simples (mas não funciona assim em todo lugar, como bem sabemos): altos impostos e muito retorno. O país tem uma educação de excelência, sendo frequentemente considerada uma das melhores do mundo. Todas as crianças, independente do rendimento da família, têm acesso a escolas públicas de altíssima qualidade. O país recebeu o título de mais feliz do planeta pelo oitavo ano consecutivo. Mas o que isso quer dizer?
O estudo considera diversas variáveis mensuráveis, como a renda (PIB per capita), a expectativa de vida com saúde, o suporte social, a liberdade para tomar decisões sobre a própria vida, a generosidade e o baixo nível de corrupção. No resultado deste ano, pela primeira vez os analistas investigaram como atitudes altruístas influenciam nosso bem-estar e os níveis de felicidade. Vale lembrar que felicidade e alegria são coisas diferentes. Especialmente nós, latinos, temos essa sensação de que estar feliz é sorrir, dançar, conversar muito, entre outros comportamentos extrovertidos (e passageiros). Mas a felicidade é algo mais profundo. Acredito que ela tenha mais relação com estabilidade, propósito e com a segurança do todo.

Pelo pouco tempo que passamos na cidade, vimos que os finlandeses não são os mais efusivos. São, por sua vez, muito educados. Não fomos mal atendidos em nenhum lugar sequer. Nos espaços públicos, falam baixo, são cordiais e respeitosos. A limpeza é geral: dentro e fora de qualquer lugar. O coletivo é de todos, e não “de ninguém”.
Como disse antes, claro que nem tudo é perfeito. O clima é um grande desafio. Mesmo que todos os prédios tenham aquecimento, a vida na cidade acaba ficando muito comprometida. Quem é acostumado com Brasil e Portugal talvez sentiria um pouco a falta da vida que há nas ruas. Também acho que os laços sociais são mais frios. Tivemos também a percepção de que os círculos sociais são menores e mais distantes. Por algumas conversas e pesquisas, vi que existe razoável xenofobia. Está longe de vir da maioria da população, mas é sim uma questão e tem aumentado com o crescimento da imigração.
Conhecemos vários lugares e participamos de atividades junto ao Instituto Guimarães Rosa. Fazem lá um excelente trabalho de ensino e de estreitamento de laços com a comunidade brasileira e dentro dela. No fim dessa pequena imersão, que foi precedida de muita pesquisa, a conclusão é que a balança é muito favorável. Os finlandeses conseguiram muito. Para mim, a Oodi é a materialização disso. Enquanto estávamos lá, observamos a vida real. As pessoas realmente usando e vivendo o espaço. Como uma biblioteca pode inspirar tantos sentimentos? Ah, voltando aos sentimentos… A admiração foi enorme. Ficamos encantados pela organização, design, funcionalidade, variedade de serviços, abertura para as pessoas. Tudo foi planejado em conjunto com o povo, através de uma pesquisa. Perguntaram (e continuam perguntando) o que deveria ter em uma biblioteca dos sonhos. E assim seguiram. Eu nunca tinha entrado em uma biblioteca onde falar não fosse quase um pecado. Lá lê-se, fala-se, cria-se, desenvolve-se. E a tristeza vem daí, mesmo. Da vontade de ter, da vontade de todos terem.
Fiquei pensando em quando eu era adolescente e me preparava para o vestibular. Pensei em quando estava na faculdade, com tanto para aprender. Lembrei dos meus primeiros passos como artista e no esforço COLOSSAL que foi criar o meu primeiro álbum. Refleti sobre a dificuldade que foi encontrar um espaço para lançar um livro. Do desejo de estar em lugares bonitos, aconchegantes e instigantes. Pensei em conquistas que obtive “na raça” e que não me trouxeram benefícios que eu poderia ter tido em outra(s) sociedade(s). Além, claro, de tantas tentativas frustradas por falta de estrutura. Pensei também nos projetos coletivos com os quais trabalhei e trabalho, nos quais tentamos mudar algo com o que temos nas mãos. Que sonho seria, ter tantas condições favoráveis para se desenvolver. E olha que ainda tenho acesso a muita coisa. Como o mundo é um lugar desigual…
Mas o gosto final, o sabor que fica, é o melhor possível, claro. Eu e Rodrigo com mais um destino na bagagem, mais aprendizado, visão de mundo mais aberta. Se alguém te chamar de comunista só por defender um estado de bem-estar social, responda: você conhece a Finlândia? 🙂