O apartamento era lindíssimo, amplo, pé direito muito alto. A mobília, antiga. Cadeiras, sofás, poltronas, cômodas, mesas, tudo cheio de detalhes e estampas bonitas. Chique. Fotos por todo lado, sempre de familiares. Muitas em preto e branco, afinal de contas são muitos anos de histórias para contar. Depois de alguns minutos ali dentro chegou à porta com cabelos brancos cuidadosamente penteados, maquiagem, roupas elegantes e uma bengala, do alto dos seus 96 anos. Noventa-e-seis-anos. Vinha com passos lentos, um pouco tremidos, mas confiantes. Trazia um sorriso e leveza no rosto.
Mostrou orgulhosamente o apartamento numa região central de Lisboa e cada porta-retrato que ali repousava. Abriu as portas de vidro da sala de jantar e nos mostrou a varanda com cadeiras brancas, uma brisa deliciosa e vista espetacular para o Rio Tejo. “Era dos meus sogros”, disse após eu elogiar a beleza do lugar. Ficou sabendo que eu cantava e disse que queria me ouvir. Nos levou até uma saleta onde tinha um piano antigo e razoavelmente desafinado. Toquei uma das poucas músicas que eu sei inteiras (The Hill – Marketa Irglova) e ela gostou bastante. Disse que era pianista, mas que há anos não tocava nada. Insistimos muito para que ela tocasse para nós, obviamente. Sentou-se e começou. As mãos já fracas não respondiam com tanta facilidade, os dedos apenas esbarravam em teclas que deveriam ser apertadas, mas as notas soaram muito bem. Os erros faziam da cena ainda mais bonita. Parou, disse que não conseguiria. Falamos que estava ótimo, incentivamos e ela recomeçou. Mudou de canção, mas por mais que se esforçasse os dedos não acompanhavam a mente rápida e muito saudável. “É a osteoporose”. E assim foi por três vezes, até se levantar dali ao som das palmas e “bravo’s!”.
Voltamos para a sala de jantar enquanto ela cantarolava, onde nos sentamos e ela nos contou um pouco da sua vida. Nasceu na Ilha de São Miguel, nos Açores. Conheceu o marido em um baile no clube local. Mas não conseguiu dançar com ele ali, pois tinha 19 pretendentes para dar atenção e seus passos de dança. Posteriormente casaram-se e tiveram 3 filhos. Tocava piano, desenhava, pintava. A música sempre fez parte da sua vida desde criança. “A casa estava sempre cheia de músicos”, contou. Viajou o mundo com o marido, estiveram no Brasil várias vezes. “Morreu há oito anos, com 86. Era um homem extraordinário, eeeeeextraordinário. Éramos muito apaixonados, ele não ligava para outras mulheres”. Eu escutava aquilo tudo com muita admiração e mil coisas passavam pela minha cabeça. No meio da conversa olhou pra mim e disse que me achava bonita, que não sabia por que eu ainda não era casada. Vixe, se eu fosse explicar pra ela… Haha! Acho que a sua vida amorosa dá uma melhor conversa do que a minha.
“Eu já quero ir lá pra cima!”. Rebatemos a afirmação imediatamente, dizendo que ainda era uma mulher bonita e cheia de vida. “Eu já fui muito ativa, fazia de tudo. Agora não. Agora estou cansada. Já quero ir.”. Eu me assustei, mas no fundo não achei tão absurdo, compreendi. Não falava como vítima, não tinha tristeza. Sua fala e sua expressão eram recheadas de leveza e luz. Não sei o motivo, mas essa pessoa me afetou de alguma forma. Durante a conversa soltou a mais bonita das frases, o mais profundo desejo do ser humano: “eu fui a mulher mais feliz do mundo.”. Tenho certeza que o pretérito não significa que ela não seja mais assim. Quer dizer apenas que seus tempos áureos já se foram, provavelmente com o seu grande amor. Conversamos um pouco mais e nos despedimos. Disse que gostou muito da minha mãe e de mim e pediu que eu voltasse para cantar mais.
Pensei no quanto a vida é diferente para as pessoas. Eu sinceramente acho que a ela é uma combinação de sorte e escolhas. Sim, todos nós estamos muito cientes de que as escolhas são fundamentais, a alma do negócio. Mas convenhamos, a sorte tem lá o seu lugar ao sol. Com certeza essa senhora teve muitas dificuldades na vida, das quais eu não faço ideia. Mas nasceu e cresceu em uma ilha paradisíaca, segura, se apaixonou profundamente e foi correspondida, casou-se, viajou o mundo, viveu uma vida confortável e longos anos ao lado do seu amor. Senti uma alegria genuína por ela, um alívio, a sensação de que há gente muito bem nesse mundo e que elas podem nos inspirar. Pensei em histórias não tão felizes que eu conheço e nas que eu não conheço também. Fechei os olhos (mesmo com eles ainda abertos) e pedi por sabedoria nas minhas escolhas e uma porção generosa de sorte na mochila. Além, claro, de ter me sentido grata por ter conhecido a mulher mais feliz do mundo.
Foto do google, meramente ilustrativa.