
A internacionalização artística pode acontecer de muitas formas e com diferentes propósitos, não há um caminho único. Para tratar desse assunto, hoje trago a Sol Bueno, artista que conheci há mais de dez anos. Desde então, tenho acompanhado com admiração a sua trajetória singular. Sol vive na zona rural de Moeda, em Minas Gerais, e é uma artista cuja criação é profundamente enraizada em suas origens indígenas, seu território e seu compromisso com a coletividade. Sua visão de mundo é ampla, sensível e engajada, com forte atuação junto à comunidade local e intensa articulação com outros países da América Latina. Ao longo dos anos, ela se consolidou como uma importante articuladora cultural, conectando redes e movimentos em prol da música autoral independente e do meio ambiente. Como parte dos meus estudos e atividades na área de diplomacia cultural, entrevistei Sol para compartilhar com vocês a riqueza de suas experiências, saberes e caminhos construídos entre o cerrado mineiro e os territórios latino-americanos.
Isabella Bretz
1) O que te motivou a buscar a internacionalização do seu trabalho como cantora e compositora? Foi um processo natural ou algo que você planejou estrategicamente?
Foi um processo que veio como consequência de um trabalho que eu já estava realizando no Brasil. Eu estava no conselho gestor de uma rede nacional de cantautores, chamada Dandô – Circuito de Música Dércio Marques, cujo foco era o fortalecimento do trabalho dos profissionais da música, a circulação de artistas, geração de renda e formação de público. Em dado momento, essa rede passou a estreitar laços com outros circuitos latino-americanos com a mesma proposta, e com este estreitamento também veio a possibilidade de interagir e fortalecer a rede latino-americana. Primeiro, recebi diversos artistas de vários países no Brasil, e depois, aos poucos, fui integrando outros coletivos e redes, que estas pessoas também geriam e integravam na América Latina. Isso se deu tanto como possibilidade de intercâmbio de redes de cantautores, quanto pelo interesse em conhecer e alcançar outros territórios culturais e suas possibilidades enquanto povo.
Essa relação aconteceu também no mesmo período em que eu lançava meu primeiro álbum autoral, então diria que a internacionalização aconteceu de forma natural, dentro de uma rede nacional da qual eu já trabalhava e fazia parte, e para a qual era planejado e sonhado o alcance e intercâmbio com outros países. Então o cenário reúne uma ação coletiva, que também se desdobra sobre uma potencialização do trabalho pessoal como artista circulante e divulgando meu trabalho autoral, enquanto parte das relações, pontes e redes coletivas que estava co-criando.
2) Você foi a primeira mulher a representar o Brasil na rede latino-americana Dándole Cuerda. Como foi essa experiência e qual o impacto disso na sua trajetória profissional e na visibilidade da música brasileira?
A experiência foi muito rica, sendo a primeira vez que saí do Brasil para apresentar meu trabalho autoral. Havia uma perspectiva da rede de igualdade de representatividade de gênero vinda de cada país, então houve um esforço e desejo coletivo pela presença de mais mulheres vindas de cada país. A presença se deu também pelo trabalho ter sido selecionado em uma curadoria coletiva, e eu, enquanto profissional, também ter dedicado tempo para participar de reuniões e tecer pontes com o coletivo. Minha primeira participação foi no ano de 2017, que aconteceu no Peru. Na oportunidade, tive apoio do Programa Música Minas, em Minas Gerais. No Peru participei de apresentações, com o coletivo, e solo, dei entrevistas para TV e rádio. Vivi uma grande troca com as pessoas integrantes do coletivo, que se tornaram posteriormente laços pessoais e de trabalho. A partir do encontro, fui convidada por outros artistas da rede para apresentações em seus países, parcerias musicais, gravações em outros trabalhos, assim como também os convidei para integrarem ações e projetos no Brasil. Isso me fortaleceu profissionalmente e me fez ampliar meu pensamento sobre produção musical no Brasil, buscando efetivar e pensar outros modelos possíveis para arte e relações na música. Após esta experiência corealizei duas edições do Dándole Cuerda no Brasil, uma em 2018, e outra em 2023, sendo que em 2018 foi quando efetivou-se a meta de representatividade de mulheres no coletivo, uma frente que abracei e trabalhei para que fosse real no cenário da música latino-americana.
3) O Dandô e o Mujertrova são projetos que promovem a circulação artística e o intercâmbio cultural. Como você se inseriu nesses projetos? Como enxerga o papel dessas iniciativas no fortalecimento da cena musical independente e na projeção da cultura brasileira para além das fronteiras?
Para o Dandô, eu fui convidada para fazer a gestão de Belo Horizonte devido ao trabalho que já havia realizado em outras redes e movimentos, como na Associação Nacional de Violeiros do Brasil, e também por ter um trabalho autoral, em diálogo com a proposta do movimento, de fortalecer redes de cantautores. Depois assumi a gestão regional e integrei o conselho gestor nacional. Já o Mujer Trova, o meu primeiro contato se deu através de mulheres integrantes do Dándole Cuerda, tendo sido convidada por Paula Ferré, que conheceu meu trabalho no Peru, e pela indicação de Cecília Concha Laborde, que havia me convidado para o trabalho do coletivo chileno “Violeteras – Herencia Rebelde”. Essas iniciativas fortalecem a cena musical independente à medida que promovem condições, através de suas plataformas coletivas para encontros, ações em rede, apresentações, formação, formação de público, divulgação, aquisição de conhecimento e estratégias coletivas para circulação e intercâmbio. Elas possibilitam também alcançar públicos e espaços para a música brasileira, principalmente se considerar o cenário da música autoral independente, além de conhecer novas referências para modos de criar e trabalhar com música.
4) Muitos artistas encontram barreiras burocráticas e dificuldades financeiras para internacionalizar seu trabalho. Quais são os principais desafios que você enfrentou e que conselhos daria para quem deseja trilhar esse caminho?
Dentre os principais desafios que enfrentei e ainda enfrento estão a comunicação/linguagem, as diferenças culturais e a condição financeira para circular. Muitas canções que tenho fazem citações poéticas a cenários e paisagens sonoras que carregam um sentido dentro do Brasil, e que fora se perdem ou podem adquirir outro. Então um grande desafio é sobre o que queremos comunicar e como. Nesse quesito falar bem a língua local ajuda muito. Eu tive dificuldade, por exemplo, em situações de dúvidas sobre expressões, sentimentos, semântica local para expressar correlações musicais. Também foi uma dificuldade os preços de passagens para comparecer em eventos culturais sem fins lucrativos. Há eventos, como festivais e apresentações em espaços que remuneram para se apresentar, o que acaba possibilitando a circulação e apresentação do trabalho musical junto a outro público, com sustentabilidade financeira profissional, mas outros, como com finalidade de intercâmbio são mais difíceis.
Neste sentido, aconselho a buscar aprender e conhecer a cultura e língua onde se pretende circular, pois internacionalizar não é só sobre nosso trabalho, mas o quanto nos interessa também a cultura onde queremos adentrar. Também sugiro buscar conhecer, se conectar e relacionar com redes, coletivos, movimentos e ações que já existem nestes territórios e que podem facilitar a integração. Abrir pontes também no Brasil, com convites para que pessoas convidadas ou redes internacionais possam vir ao Brasil, é uma forma de alcançar outros territórios. Nem sempre é sobre viajar ou sair do país, mas como se conectar com outros territórios, e isso pode ser feito daqui do Brasil, com parcerias musicais, participações em eventos online, cursos, apoio e contribuição em redes. Em relação a questões financeiras, uma possibilidade são os editais públicos e ações de financiamento coletivo.
5) O que você acha que precisa mudar para que a internacionalização da música brasileira seja mais estruturada?
Há uma internacionalização da música, mas diretamente expressa através de grandes conglomerados de mídias e de um mercado musical que domina, em que será investido em música, artista e trabalho musical como meta lucrativa. Esses grandes mercados costumam ser os mesmos em múltiplos espaços e territórios internacionais, de forma que em dada medida, em escala global, mesmo aqueles que estão no mainstream ainda assim têm pouca visibilidade em um cenário mundial. Dado este ponto de partida, minhas reflexões são para um cenário que está fora deste mercado majoritário, e que faz parte de uma produção independente. Para que a internacionalização da música para o cenário independente seja mais estruturada, é preciso propiciar e fomentar espaços que acessem públicos afins que possam tecer relações identitárias, de afeto e criativas para com o conteúdo da música brasileira. Para que isso aconteça é necessário que se mude o cenário de fomento da música brasileira, em que existe pouco ou mínimo incentivo. É necessário mais incentivo público, políticas públicas com esse foco, articulação entre instituições de produção de arte, cultura e conhecimento, e meios acessíveis para que os profissionais possam pleitear integrar estes espaços.
6) Sua música traz fortes influências das suas raízes no cerrado mineiro. Como essa identidade se comunica com públicos de outras culturas? Você já teve alguma experiência marcante de conexão cultural ao apresentar sua música no exterior?
Sim, esse é um desafio, falar de coisas e expressões que são tão identitárias localmente e que perdem o sentido fora da língua e do território. No entanto, há outros pontos de conexão que me ligaram, mesmo com estes desafios. Muitas vezes a sonoridade e ritmo fizeram a ponte. Já falei antes de canções também, adentrando uma breve explicação sobre o sentido e sentimento, buscando partilhar desse lugar com algum lugar comum do território onde estou. E também há questões que atravessam a territorialidade espacial, sendo uma questão que alcança outras culturas no mundo inteiro. O fato de eu apresentar canções que falam sobre enfrentamento do racismo, sobre protagonismo de mulheres, sobre justiça social, me possibilitou conectar com públicos que também anseiam e lutam por estas pautas. Houve experiências muito interessantes: a música “Ó Deus salve meu cerrado”, mesmo com muitas palavras impossíveis de traduzir, como nomes de plantas regionais e expressões culturais locais, ganhou uma perspectiva emocional em uma apresentação no Peru que eu não imaginava. A viola de 10 cordas por si, tocou pela sonoridade um lugar regional de onde eu expressei, e a palavra cerrado ganhou, por similaridade linguística com outra local, um sentido introspectivo e pessoal. Outra surpresa foi a música “Mbari”, que acabou sendo a música que em quase todas as vezes que toquei, as pessoas choraram e sentiram conectadas. Antes de cantar essa canção eu fazia uma breve apresentação do contexto de criação da mesma. Acredito que para além da letra, há uma interlocução da poética e da sonoridade, e da pessoa humana que executa a música, que possibilita essa conexão. Também facilitou no meu caso o uso de instrumentos e sonoridades regionais, que possibilitaram e possibilitam uma não necessidade de tradução, por expressarem que nascem e existem a partir de uma paisagem sonora regional e distinta. Assim, patangome, agogô, viola de 10 cordas, caixa de folia, kalimba, cantos regionais e vozes nascidas com relação a vivências da terra se tornam mais importantes e tocam, a despeito de muitas vezes a letra não ser traduzível. A música também se conecta por aquilo que como humanidade e povo, buscamos querer ouvir e sentir da outra pessoa, no desejo de conhecer aquilo que nos difere, nos torna estrangeiros, mas ao mesmo tempo, nos reconhece, nos acolhe e que permite tocar.
7) Para além dos benefícios individuais para o artista, como a internacionalização da música pode contribuir para a cultura do Brasil e para a imagem do país no cenário global?
Ao internacionalizar a música, o Brasil ganha oportunidade de ter sua cultura vista de forma múltipla e diversa, para além de cenários para os quais o imaginário musical sobre o Brasil quase sempre acena, como samba e bossa nova. Isso possibilita adentrar por paisagens sonoras que não são óbvias, e que acabam ampliando cenários musicais com potencial de fortalecer múltiplas bases, contribuindo para um retrato de uma cultura viva mais próxima de realidades locais distintas. Isso conecta outras pessoas a expressões artísticas, culturais, redes e estilos das diversas partes do país. Cria novas conexões e oportunidades também para a economia criativa do país ter visibilidade, incluindo possibilidades de relações econômicas, como com turismo e fortalecimento da cadeia cultural do país, que é gigante e abarca profissionais não só da área artística, mas da área técnica, educacional, da produção e toda rede de apoio que envolve fazer cultura.
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